quinta-feira, 23 de julho de 2009

RADICALMENTE HUMANO


(Entrevista publicada nas Páginas Azuis do Jornal O Povo, no dia 3 de abril de 2006)

Há 40 anos, o advogado Antônio de Pádua Barroso atuava como defensor do primeiro civil levado a julgamento pelo regime militar no Ceará. A Ditadura dava seus primeiros passos e uma paranóia perseguitória tomava conta do cotidiano dos brasileiros.


A acusação de ter trazido um boné de Cuba para Fortaleza levou o ferroviário João Farias de Sousa ao banco dos réus durante os primeiros anos da Ditadura Militar instaurada no Brasil. Depois de julgado, o velho comunista da estrada de ferro foi condenado a 10 anos de prisão. O caso foi parar no Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, e a decisão foi revogada. Há 40 anos, o advogado Pádua Barroso conseguia a absolvição do primeiro civil processado pelo regime militar no Ceará.

Depois disso, Barroso passaria de simples criminalista a personagem efetivo da Ditadura Militar em Fortaleza. Estava na outra margem do rio e nadava contra a corrente. Ele e a advogada Wanda Rita Sidou. Dupla que defendeu, de graça, mais de 100 perseguidos do aparelho de repressão política instaurado em 1964. Entre arroubos quixotescos, convicções e prática radicalmente humanas, o advogado dos subversivos fiou parte da história dos anos de chumbo.

Arredio a holofotes, o discreto Pádua Barroso não freqüenta colunas sociais e nunca fez de seu respeitado currículo bucha para marketing pessoal. Aos 77 anos (faz aniversário no próximo dia 8), mantém-se fiel ao Centro da cidade onde possui um charmoso escritório no Palácio do Progresso. Típico dos anos setenta. Com direito a ''bureau", estante embutida na madeira escura, espinhaços de livros enfileirados e um Dom Quixote de ferro a empreitar as palestras. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

O que levou o senhor a defender os perseguidos pela Ditadura Militar iniciada em março de 1964 no Brasil?
Minha advocacia sempre foi criminal. Por isso fui procurado para esses casos que existiam na Justiça Militar. A Lei de Segurança Nacional é um diploma legal criminal. Fui procurado, fiz a primeira defesa e outros foram aparecendo.

Qual foi o primeiro caso?
Foi de João Farias de Sousa. O primeiro civil julgado aqui. Todos o conheciam por Caboclinho e ele era aposentado da estrada de ferro.

Isso foi em 1964?
Foi depois. Não havia Auditoria Militar no Ceará, era em Recife. Depois foi instalada a auditoria daqui e ninguém mais foi julgado em Pernambuco. Alguns casos começaram lá, como de alguns políticos que tiveram o mandato cassado. Aníbal Bonavides e Blanchard Girão, por exemplo. Desses, fizeram o inquérito policial militar aqui e mandaram para Recife. Depois retornaram os processos, mas o primeiro julgamento que aconteceu foi o de João Farias de Sousa.

Ele era acusado de quê?
As acusações eram fictícias, exageradas. Não havia nada, essa que era a verdade. Não havia nada que configurasse crime político. Primeiro que os crimes políticos teriam ocorrido durante o regime democrático que foi derrubado. Acusação de que era comunista, que esteve em Cuba, que João Farias de Sousa trouxe um boné de Cuba. Ele era aposentado e atuava na estrada de ferro daqui e de Camocim. Um comunista histórico, já velho. Foi condenado a 10 anos de prisão. E lhes digo: o auditor militar é juiz togado. É um juiz técnico na composição do Conselho Militar. Doutor Arnaldo Carnachiale, que era do Paraná, saiu do julgamento chorando. Porque, como relator, não conseguiu convencer os juízes militares da acusação a João Farias. Ele foi vencido por quatro votos contra um dele. Eu apelei no dia 18 de abril de 1966 e ele foi absolvido em 1º de agosto de 1966 pelo Superior Tribunal Militar(STM). Só teve um voto contra.

Como eram os debates durante o julgamento, já que as acusações eram descabidas, como trazer um boné de Cuba?
Essa história no caso dele, do João Farias. Mas os outros também eram acusados de pequenas coisas, como se reunir. Isso foi no começo. Porém, depois que a repressão se firmou, se intensificou, aí houve outra reação. Entrou gente nova acusada. Os velhos, os que eram conhecidos, os intelectuais, eram acusados sem ter nada demais. Depois foi que surgiram as facções e surgiram para fazer reação à repressão. O caldo entornou. Se acirrava de um lado eles respondiam do outro. Chegaram até a violência, mas isso foi depois, muito depois. No começo não tinha nada de mais. É tanto que esses que foram julgados inicialmente, chamados de esquerdistas, subversivos ou comunistas, não me consta que nenhum tenha passado muito tempo na cadeia. Tiveram prisão relaxada e foram absolvido. Depois foi que se acirrou.

O senhor data essa aparente calmaria de 1964 até...
Não era calmaria. A repressão praticava absurdos como invasão a domicílio e prisões arbitrárias. No começo não havia violência física e tortura, ainda valia o habeas corpus. Pois bem, depois, a medida que a repressão aumentou, surgiram as organizações inspiradas no Sul e Sudeste. Surgiu gente nova, estudantes. Uma vez, durante um julgamento, eu disse que os estudantes eram os sempre antecipados gansos da juventude. Eles são os primeiros que alarmam, que reagem. Entrou a massa estudantil e passou a complicar.

E a ter dificuldade também para defendê-los?
Claro. No caso do julgamento do João Farias, um comunista velho, histórico, eles levaram em consideração que se tratava de uma pessoa inofensiva. É tanto que o relator do processo dele, no STM, ministro Alcides Carneiro, disse que a 'um homem, já se aproximando do fim, impunha-se uma condenação inaceitável...´. Era por aí, 10 anos de reclusão! Então era vago no começo, depois engrossou.

Ele pegou 10 anos, mas não foi preso?
Não, ele foi preso. Esperou a apelação preso. Não me lembro quanto tempo foi, mas ficou na Casa de Detenção - onde depois funcionou a Emcetur.

Em quantos casos de perseguidos políticos o senhor atuou?
Não me lembro, não tenho idéia (segundo arquivos da Auditoria Militar, mais de 100 presos). Fazíamos sempre a defesa em bloco. Por exemplo, esse processo (mostra aos repórteres) foi no ano de 1977. Eram trinta e tanto acusados. O julgamento começou às 8 horas da manhã e terminou no dia seguinte. Fazíamos a defesa em bloco. Digamos: quatro eram meus, seis da doutora Wanda Sidou.

Qual foi o caso mais complicado que o senhor pegou?
Todos foram complicados, mas os mais complexos foram os da ALN (Aliança Libertadora Nacional). No de São Benedito estávamos eu, a doutora Wanda (Sidou), e o Evaldo Pontes que defendeu o José Bento. E creio que o Jurandir Porto funcionou também como advogado, ele era defensor público da Auditoria Militar. Mas eu e a Wanda, lembro bem, defendemos o Valdemar Menezes, Willam Montenegro, Antonio Esperidião Neto, que veio de Alagoas como o Valdemar e o Thimochenko. O Thimochenko fugiu, mas foi julgado. Também tinha o José Sales. Esse foi difícil. Os da ALN sempre eram complicados porque envolvia assalto a ônibus, banco... E nessa época a situação já estava pesada. Era o tempo do governo Médici (general Emílio Garastazu), foi terrível. Passou a abrandar com o governo Geisel (general Ernesto). Ele destituiu alguns comandantes militares e já manifestava que vinha preparando a chamada abertura.

Sobre o assalto ao Banco do Brasil de Maranguape, todos foram absolvidos porque não se chegou a conclusão nenhuma. Hoje se sabe que foi o PCBr e não a ALN. O senhor trabalhou nesse caso?
Funcionei também, éramos eu e a Wanda. Mas não sei desse detalhe.

Vocês sofreram algum tipo de intimidação?
Não. Nunca sofri ameaças, eu encontrava dificuldades (risos). Dificuldade para obter informações das pessoas que desapareciam seqüestradas na rua, nos ônibus. Tenho cópias de petição dirigida ao comando da 10ª Região Militar (10ª RM), à Secretaria de Polícia, ao auditor militar, indagando se fulano se encontrava preso. Se davam alguma notícia. Quando apareciam já tinham sido extorquidas as declarações que eles queriam. Extorquidas e criadas, como eles ditavam. Interessante é que eles botavam testemunhas nesses depoimentos e todas eram policiais. Eu nunca assisti e nem a doutora Wanda declarações de insuspeitos na Polícia Federal ou qualquer outro órgão da repressão.

Havia uma neurose e todo mundo que "vestisse vermelho" era comunista. O Exército e a Polícia Federal não consideravam o senhor e dona Wanda Sidou comunistas?
Não sei, nunca me disseram. Mas que nós éramos rastreados, éramos. Nós sentíamos isso, nos acompanhavam, tudo para nos surpreender com alguma coisa. Agora, eu não me impressionava não. Com a doutora era mais ostensivo e ela via. Eu sentia que era acompanhado e ela via. Eles a tinham na conta de comunista, eu nunca tive envolvimento político. Agora, no contato diário com eles, se quebravam algumas barreiras. Para vocês verem, picharam ali pela alfândega e havia um filho de um coronel do Exército no meio (risos). Estavam todos na Polícia Federal e eu fui lá para pedir soltura. O superintendente perguntou brincando: 'o que você quer, só vive me aperreando´. Ele se dava comigo, era um amigo urso. Então eu disse que queria que ele mandasse soltar os rapazes. Aí ele disse 'rapaz, você vai terminar preso´. Eu respondi: 'olhe, vocês podem me matar ou prender. Se me matar, morri. Se for preso, um dia serei solto e haverá uma confusão enorme no Brasil porque a OAB não vai deixara passar pois sou conselheiro de lá. Mesmo que não fosse, ela faria. E fiquem sabendo, participado para todo e sempre, você deixe dessas brincadeiras porque eu não tenho medo do Exército, da Marinha, da Polícia...´. Aí disseram que estavam brincando.

E a doutora Wanda...
Já faz bem oito ou dez 10 que ela morreu e até agora hoje, não encontraram uma rua para colocar o nome dela. A Câmara Municipal aprovou. A Wanda era uma mulher extraordinária, culta, inteligente, corajosa e despojada. Era uma beleza de inteligência. A Wanda sacrificou tudo. Eu também, mas ela era ostensiva. O julgamento do processo do PCB, não sei qual foi o ano, em 1977 talvez. Havia um velho, comunista histórico do Brasil, José Duarte. Ele tinha participado da Intentona, esse processo foi julgado no dia 27 de novembro - o dia da Intentona. Combinava com a Wanda que eu falava em último lugar, era para abrandar, adoçar um pouco. Porque ela dizia na cara, enfrentava. Ela deixou o José Duarte para o fim, falou da coincidência do dia da Intentona e uma das acusações contra o velho era de ter participado do movimento. Aí, ela defendeu o velho e no fim gritou 'viva a Intentona!´. Por aí você tira. O Ministério Público ofereceu denúncia contra ela e o auditor recusou. O Ministério Público recorreu e o STM confirmou a decisão do auditor.

O senhor tinha muito problema na Auditoria Militar?
A Justiça Militar aqui no Ceará foi, de certo modo, razoável. Foi dura, mas razoável. A repressão política é que era pesada. Dois auditores merecem ser destacados, o doutor Ângelo Rattacaso Júnior e doutor Ramiro. O Ângelo fazia o que podia, procurava contornar as situações. O Ramiro era mais ostensivo, mas passou pouco tempo aqui e o transferiram para a Bahia. Depois o aposentaram compulsoriamente (risos). Mas havia auditores terríveis. Fiz três representações contra um comandante militar daqui, o coronel Saraíba. Eu fui visitar o pessoal do caso de São Benedito que estava preso no 23º Batalhão de Caçadores (23º BC). Num sábado, à tarde, cheguei lá e reclamaram que haviam servido almoço com carne salgada e não serviram água. O sargento disse que não havia dado a água porque era ordem superior. Então eu vi o subcomandante José Bezerra de Arruda, à paisana, colhendo uns cajus. Como eu me dava com ele, me perguntou o que estava acontecendo e eu falei. Ele disse que 'isso aí, não´. Podia dar água por conta dele. Na segunda-feira entrei com uma representação contra o comandante e nada. Fiz a segunda representação, nada. Aí escrevi a terceira representação e fui à Auditoria. O auditor (Alzir Carvalhais) disse que havia despachado as duas anteriores para o comando da 10ª RM, mas eu disse que não havia recebido resposta. O auditor recomendou que eu não desse entrada na terceira representação porque não queria confusão na Auditoria dele. Refutei dizendo que nunca criei confusão em juízo algum, mas eu nunca tinha me resignado com pusilanimidade de juiz. Aí ele disse que o comandante (general Jansen Barroso) havia dito que se eu entrasse com a terceira representação, mandaria me prender. Mandei carimbar a 2ª via e disse: 'está aqui Alzir. Agora, eu espero que mandem me prender. Eles lá, da 2ª Seção (serviço secreto do Exército), sabem onde eu moro, onde eu piso, sabem que todo dia 10 estou aqui. Então, vou esperar minha prisão´.

O senhor foi preso?
Não. Fui a uma audiência no fórum (Clóvis Beviláqua) e me encontrei com a Wanda Rita (Sidou) e ela me convidou para conversar na rua (Centro). Recusei, dizendo que ia para o quartel general e contei a história. Ela, com medo que me prendessem, disse que ia comigo. 'Wanda, ninguém me prende´. Mas fomos juntos. Chegando lá, fomos atendido pelo coronel Paulo Studart, um sujeito descente. Ele disse que infelizmente o general não podia me atender, porque estava numa reunião. Pediu que eu ligasse no dia seguinte. Quando retornei o telefonema, o Studart disse que o general foi contactado e mandou eu aguardar. Isso foi perto do Carnaval (risos). Passado o Carnaval, segunda-feira de manhã, fui para o 23º BC visitar os rapazes. Quando cheguei lá, o Arrudinha (subcomandante do 23º BC) disse que não havia mais preso político no batalhão. Ordem do general depois que aconteceu o episódio da proibição da água. Ele disse que não queria mais preso político em quartel do Exército. Foram transferidos, em comboio, para o então recém inaugurado IPPS (Instituto Penal Paulo Sarasate).

Lá houve uma greve de fome dos presos políticos...
Os presos políticos tiveram um problema com o coronel Chico Bento (da Polícia Militar), diretor do IPPS, e fizeram uma greve de fome. Foram vários dias e temíamos pela saúde dele. Eu redigi um grande texto e assinei com a Wanda, destinado ao presidente Ernesto Geisel, ao ministro da Justiça - não sei se era o Armando Falcão, e ao presidente do STM. Falamos da insensibilidade por parte das autoridades locais em resolver o impasse e em respeito à humanidade, botei pra lascar, pra ser preso. Poucos dias depois, um coronel do Exército daqui foi ao IPPS e resolveu o problema a mando de Brasília.

Como se conseguia provar que os presos haviam sido torturados se o Instituto Médico Legal (IML) era controlado pelo aparelho de segurança?
Tem o caso do Fabiane Cunha. Ele tinha, se me lembro, sete processos. Torturam o Fabiane e o deixaram no quartel da Polícia Militar na Praça José Bonifácio (atual 5º Batalhão Policial Militar). A tortura aconteceu pouco antes da instrução de um processo. Aí, o Fabiane me mostrou equimoses nas pernas, coxas, lesões no pulsos decorrentes de pau-de-arara. Eu não sei porque, marcaram a audiência tendo acontecido naqueles dias a tortura. Acho que houve uma desarticulação entre os torturadores e a Auditoria Militar. Cada vez que descobriam coisas novas contra o preso, o levavam para abrir o inquérito e uma nova sessão de tortura era desencadeada. Orientei o Fabiane para ir com um calção de praia ao invés de cueca e na hora que tivesse terminando o interrogatório dissesse que havia sido torturado. Eu iria bater na mesa, como sinal, e ele deveria tirar a roupa, arrear as calças. Assim foi feito. O auditor era um canalha, eu queria que constasse no depoimento tudo que foi mostrado lá pelo preso e o auditor recusou. 'Absolutamente, não faço constar isso´. Então, por uma questão de ordem pedi a palavra para fazer um protesto (risos). Protesto não pode ser indeferido e aí ele teve de narrar na ata da audiência todos os detalhes. O IML não relatava isso.

A maioria dos laudos eram evasivos...
Tá aqui (folheia um processo), Edilson Peixoto Pinheiro! Esse rapaz foi torturado. Olha o que diz o IML em 30 de junho de 1971: "Encontramos homem se dizendo vítima de tortura por parte de policiais, apresentando pequenas cicatrizes de um centímetro de diâmetro em ambos os pulsos de cicatrização recente, de escoriação da pele, informando a vítima ter sido conseqüente da amarração dos pulsos por corda. Respostas aos quesitos: primeiro - lesão cicatricial; ao segundo - sem elementos para responder. Podendo ser resultante de algemas". E mais não disse. Assinado por Francisco Autran Nunes Filho e Antonio Fernandes de Oliveira. Havia laudo que dizia nada.

É verdade que no Ceará houve uma operação semelhante à Operação Bandeirante, chamada Operação Barra Limpa?
Desconheço. Essas informações políticas, sobre operações, eu não tenho conhecimento.

Como os presos políticos pagavam o senhor e a doutora Wanda?
Eles não pagavam, nós não cobrávamos. Me lembro de uns dois ou três que quiseram vender a casa e não admitimos. Alguns que podiam dar, davam pouca coisa. Mas não cobrávamos.

Quanto tempo de advocacia o senhor tinha em 1964?
Seis anos. Comecei a advogar em 1958.

Como o senhor sobrevivia defendendo presos políticos gratuitamente?
Nessa época, eu fazia advocacia geral com destaque para a criminal. Eu nunca fiz trabalho e tributário. A conselho do professor Eribaldo Costa, passei 13 anos fazendo advocacia geral, depois me limitei ao crime, família e sucessão. Vez por outra fazia cível.

O senhor era casado e tinha duas filhas. Nunca teve medo que acontecesse alguma coisa a eles?
Não. Eu nunca me preocupei com isso. Quando se é mais novo, tem-se menos medo das coisas. Eu também nunca transmitia nada em casa. Hoje são três filhas e um filho, o mais novo. Ele formou-se mas nunca teve sangue de advogado, é juiz de direito.

Demitri Túlio e Raimundo Madeira
da Redação Especial para O POVO

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